quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Vijaya Daśamī - o Dia da Vitória

Após as nove noites dedicadas a Devī, em que os devotos pedem por suas bênçãos para que elimine os obstáculos da mente, enriqueça a mente com qualificação e abençoe com o ensinamento, é celebrado o 10º dia, Vijaya Daśamī, o "dia da vitória", representando a aquisição do autoconhecimento e a consequente liberação do estado de sofrimento do ser humano.

É dito que o terrível asura Mahīśa, capaz de muitas disciplinas, conseguiu uma incrível bênção: ele pediu que só pudesse ser morto nas mãos de uma mulher, julgando que nenhuma seria capaz de vencê-lo em combate. Subestimando Śakti, Mahīśa se considerou imortal, conquistando todo o Universo. Os Devas, derrotados e humilhados, foram tomados por indignação e raiva, e com isso um feixe luminoso se manifestou a partir de cada um deles, unindo-se em um único lugar onde se manifestou Durgā, "aquela que é difícil de ser alcançada", a própria Devī, mãe de todo o Universo.

Montada em um grande leão, com inúmeros braços e as armas de todos os Devas, Devī foi ao encontro de Mahīśa e seu enorme exército de asuras. Suas gargalhadas e o rugido de sua montaria permearam todo o Universo, enquanto ela facilmente varria seus inimigos para longe com suas armas. Durante nove dias Devī lutou com hordas de asuras e seus generais, derrotando todos eles. Por fim, no décimo dia, o próprio Mahīśa a enfrentou, mudando repetidamente de forma com seu poder de ilusão a medida em que Devī o golpeava. Entendendo que a dissolução de uma forma sempre resultaria no nascimento de outra, Devī finalmente saltou sobre Mahīśa, que se encontrava na forma de um búfalo, fincando sua lança no coração do asura; e enquanto Mahīśa se manifestava com sua forma original, saindo pela boca do búfalo, Devī o subjugou com seus pés, o segurando pelos cabelos e, por fim, cortando sua cabeça, o derrotando definitivamente. Com isso, o Dharma foi restabelecido e a ordem voltou a imperar no Universo.




mahishasura mardini
Devi destruindo o asura





O nome Mahīśa significa, literalmente, "búfalo". Este animal é símbolo de ignorância, que assume a forma dos inúmeros desejos. Os desejos desenfreados resultam sempre em sofrimento, agressão e destruição, derrotando todos os Devas, as tendências positivas da mente. A dissolução de um desejo através de sua satisfação apenas produz novos desejos, por outros objetos, nunca resolvendo a ânsia humana por satisfação plena. Devī representa o conhecimento, a capacidade de ir além dos desejos e a vida de disciplina que conduz a isto. Para solucionar o problema fundamental do ser humano - a eterna sensação de falta que o indivíduo carrega e tenta solucionar com conquistas em vão - é preciso ir no coração do problema - a ignorância a respeito de si mesmo. Esta falta sempre presente não é de fato real, mas aparente, derivada de um desconhecimento a respeito da verdadeira natureza do Ser. Assim, Devī perfura profundamente o coração de Mahīśa com sua lança, alcançando o cerne do problema, e corta a cabeça do asura, simbolizando a discriminação entre o Eu - eterno - e o ego - perecível -, em termos de conhecimento. A noção de limitação e incompletude do indivíduo é, portanto, dissolvida, liberando-o do estado de sofrimento.

Que neste Vijaya Daśamī, Devī nos abençoe com uma mente livre de obstáculos e clara, acesso ao ensinamento e o conhecimento a respeito de si mesmo, preenchendo o coração humano aparentemente vazio com a descoberta de que, de fato, sempre esteve pleno com a presença de Devī.

JAYA MĀ!
Patrick van Lammeren

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O Aniversário de Gaṇeśa

Gaṇeśa Caturthī - dia 17 de setembro de 2015

Por Patrick van Lammeren




Hoje, 4º dia depois da Lua Nova do mês hindu de Bhādrapada, comemora-se o nascimento de Gaṇeśa, o Removedor dos Obstáculos.

É dito que neste dia não se deve olhar para a Lua - apesar dela estar sempre muito bonita, como um sorriso no céu poente. Em um de seus aniversários, Gaṇeśa foi visitar sua mãe, que o encheu de moḍaka, seu doce favorito. Gaṇeśa, tão guloso, comeu tudo o que podia, até ficar empanzinado. Já com o Sol se pondo, resolveu voltar para a sua casa, antes que a noite caísse. Montou em seu rato, e adentrou a floresta.

Porém, eis que surgiu uma serpente, assustando o rato que acabou por jogar Gaṇeśa ao chão. Com o impacto, sua barriga extremamente cheia de moḍaka se rompeu, fazendo com que todos os doces rolassem para fora! Rapidamente, Gaṇeśa pegou todos os moḍaka e os colocou de volta em sua barriga; pegou a serpente e a enrolou em torno de seu corpo, fazendo dela um cinto que manteve sua barriga fechada novamente.

Vendo tudo isso, Candra, a Lua, achou tudo aquilo muito engraçado e desatou a gargalhar. Enfurecido, Gaṇeśa quebrou uma de suas presas e a arremessou contra Candra, o furando. É dito que, se olharmos com atenção, vemos o furo que o dente de Gaṇeśa fez nele - a mais notável de suas crateras, chamada atualmente de Tycho. Além disso, Gaṇeśa o amaldiçoou, dizendo que perderia seu brilho totalmente, o que de fato ocorreu!

Candra ficou desolado. Como ele, que ilumina de noite com sua luz prateada, que nutre as plantas, permeando suas seivas e garantindo a alimentação de todos os seres, poderia ficar sem brilho??

Foi, então, tentar resolver o problema com Brahmā, o criador. Diante da situação, Brahmā disse para que ele tentasse apaziguar Gaṇeśa, realizando inúmeras disciplinas em seu nome para que pudesse se redimir de seu erro.

De acordo, Candra passou muito tempo realizando asceses diversas, sempre com Gaṇeśa em mente, até que finalmente suas ações deram resultado. Gaṇeśa foi ao seu encontro, se disse muito satisfeito, mas que não teria como retirar sua maldição, por ter valor pela verdade - caso a tirasse, seria como se tivesse mentido, então. Por outro lado, ele poderia complementar o que havia dito, apaziguando os efeitos da maldição. Com isto, Gaṇeśa manteve o fato de que Candra perderia completamente seu brilho, mas acrescentou que isto ocorreria de vez em quando, ciclicamente, resultando nas fases da Lua.

Mais ainda, Gaṇeśa pegou Candra e o colocou em sua cabeça, o utilizando como uma bela jóia, brilhando sempre diante dos olhos de todos os seus devotos.

Gaṇeśa representa o Todo, a própria Ordem Cósmica que mantém todo o Universo funcionando e que, por isso mesmo, inclui a nós mesmos. Sua grande barriga é como todo o Universo, que se mantém coeso e harmônico devido unicamente ao poder de Gaṇeśa - por isso todos os moḍaka que saem de sua barriga rompida são recolocadas nela, e uma serpente - símbolo de Śakti, todo o poder - é utilizada para manter a barriga inteira.

Esta visão de que há uma unidade no Universo e que há uma Ordem que a tudo permeia é uma grande bênção para o indivíduo, sendo um dos objetivos de uma vida de Yoga. Porém, devido à confusão e ignorância, os indivíduos são tomados pelas expectativas, desejos e emoções, incapazes de ter esta visão tão incrível.

A Lua representa a mente emocional e oscilante, variando em extremos constantemente, e por isso Candra representa esta mente tomada de ignorância e confusão, que ri e desconsidera a visão de uma Unidade. O resultado é apenas sofrimento e escuridão.

Ao mesmo tempo, a história ensina que há uma maneira de ir além destes obstáculos, através de uma vida de Yoga. Disciplinando a mente, trazendo Gaṇeśa constantemente a seu pensamento, o indivíduo é capaz de lidar adequadamente com suas emoções e desejos, ir além da sensação de separação com o Universo e compreender este Todo que a tudo permeia, abrindo as portas para o autoconhecimento e a liberação de todo o sofrimento. Tal indivíduo é chamado sábio, que está além das emoções, o que não significa que ele deixe de tê-las. Como Candra, que deixa de permanecer na escuridão, mas oscila frequentemente, o sábio permanece com suas emoções, mas ao invés delas serem uma causa de sofrimento e aprisionamento, agora elas são como um adorno, embelezando uma vida repleta de conhecimento, e por este motivo Gaṇeśa coloca em sua própria cabeça a Lua crescente, representando a maestria que o sábio adquire sobre a mente.

Então, é dito que não se deve olhar para a Lua, não como uma superstição tola, mas como uma forma de meditação nesta história e como oração a Gaṇeśa, para que ele nos abençoe com discriminação, conhecimento e a capacidade de remover o maior dos obstáculos, que é a ignorância a respeito de si mesmo.

Feliz Gaṇeśa Caturthī!

Jaya Mahāgaṇapati!

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Os mestres




Sri Dakshinamurti



Sri Shankaracarya





Sri Swami Tapovan




Sri Swami Chinmayananda

Sri Swami Tarananda Giri e Gloria


Sri Swami Dayananda e Gloria




Ter um mestre faz diferença na vida de uma pessoa. O mestre é chamado de guru - gu significa andhakara, escuridão, ignorância; ru significa tan-nivartakah, aquele que elimina a escuridão de sua mente.

O problema de sofrimento se dá devido a ignorância de si mesmo, de sua natureza real. O mestre é a pessoa que, tendo resolvido seu problema de carência e sofrimento, pode ajudar outro a resolver seu próprio problema. Alguém que já está livre, nada tem mais a ganhar, e, por isso, pode ajudar outros. E ajuda através de ensinamento, de transmissão do conhecimento do Eu livre.

Conhecimento é a maior bênção na vida de uma pessoa. Qualquer que seja o conhecimento, ele revela algo novo, até então desconhecido e que ao ser conhecido entra em nossa vida. Quando o objeto do conhecimento é si mesmo, o Eu, e ainda mais um Eu que já é livre, a bênção é total. Faz toda a diferença para a pessoa, em sua vida.

Além disso, ter um mestre é fazer parte de uma família de conhecimento, é pertencer a uma linhagem de luz, de conhecimento. Todas as pessoas que estão antes de nós se tornam o suporte, a inspiração, para nossa vida.

Ter um mestre é ter luz, clareza, na vida; ao mesmo tempo é saber que a grandeza, que fez o mestre ser quem ele/ela é, é conhecimento e esse conhecimento é o presente que recebemos. Como uma lâmpada de fogo que ilumina completamente outra e faz dela uma fonte completa de luz. A bênção é total. A bênção é de conhecimento, adquirida pelo mestre.

A FELICIDADE ESTÁ CENTRADA NO EU

A FELICIDADE ESTÁ CENTRADA NO EU


Sri Swami Dayananda




Swami Dayanandaji e Swami Chinmayananda nos anos 70s



É até engraçado dizer que devemos nos libertar de nós mesmos.  A gente sempre pensa que estamos limitados por uma série de fatores externos; e basicamente nos sentimos frustrados. Essa é uma descoberta que nos torna mais humildes. Nós não somos capazes de nos aprovarmos tal como somos.  A tentativa constante é então de nos tornarmos diferentes do que somos. Nesse processo criamos mais problemas para nós mesmos e naturalmente para os outros ao nosso redor.


Liberdade significa ser livre de culpa e de dor

Tem uma frase na Taittirīryopaniṣad, kimahaṃ sādhu nākaravaṃ kimahaṃ pāpaṃ akaravam iti (2:9), “Por que eu não fiz a coisa certa? Por que eu agi errado?” Mesmo que você não repare ou não leve muito à sério, sempre haverá alguém que irá apontar suas faltas e omissões. Suas próprias faltas e omissões o fazem sentir culpado, enquanto as faltas e omissões dos outros mais próximos o magoam. ‘Por que ele ou ela não fez isso por mim, ou por que fez isso comigo?’

Você é o sujeito e você também é o objeto. Como sujeito da ação você é culpado e como objeto da ação você é magoado. Portanto, para a pessoa autoconsciente a culpa e a mágoa naturalmente agem contra ela como pessoa. A Gītā diz ātmaiva ripurātmanaḥ (6:5), “O indivíduo é seu próprio inimigo”. A pessoa se torna sua própria inimiga porque ela não se aceita. E pensamento positivo não ajuda em nada aqui.


Tudo é um privilégio se existe auto aceitação

Você tem de se ver como aceitável por si próprio. Nesse caso, você é uma pessoa livre. Sua mente é um privilégio, porque mesmo sem pensar você fica satisfeito com quem você é.  O pensar é um privilégio. O desejar é um privilégio. Sem as lembranças e reminiscências você é feliz sendo você mesmo. Sem desejar nada você é feliz. Você é livre para ter desejos. Na realização de si mesmo existe satisfação. O seu corpo físico é um privilégio. Suas limitações na verdade não contam se você é uma pessoa realizada. Isso é liberdade. O indivíduo é livre o suficiente para ter um corpo limitado, uma mente limitada, ou os sentidos limitados. Tudo que é externo é lucro para você. Essa liberdade não é relativa. A liberdade relativa é sempre variável porque você é livre apenas por um momento—quando você se esquece do fato que você não se considera aceitável. Portanto, liberdade relativa resulta em felicidade relativa.
           

Felicidade não é um objeto ou um atributo

A felicidade não pode ser um objeto em particular. Se assim o fosse, nós a podíamos reter. Felicidade não é nem o objeto nem o atributo do objeto. Uma folha é um objeto. Quando você diz ‘folha verde’, o verde é um atributo da folha. De forma similar, não existe um objeto chamado ‘o objeto feliz’ que tem por atributo específico a felicidade, como a cor verde da folha.  Felicidade não é um atributo que é visível e nem é um substantivo. Não existe um lugar em particular que possa fazer você feliz ou infeliz. Aliás, qualquer lugar pode fazer você feliz ou infeliz. Também não existe uma determinada hora que você possa chamar de ‘a hora feliz’. Você não pode determinar que todo dia às cinco da tarde você fique feliz. Isso significaria que pelo resto do dia você não estaria feliz. Isso não é verdade. Igualmente você não pode dizer que os relacionamentos são a felicidade. Todas as relações têm seus problemas. Tudo o que temos neste mundo—o tempo, os lugares, os objetos, os atributos dos objetos, e os relacionamentos—não podem ser chamados de felicidade.


Você não precisa satisfazer um desejo para ser feliz

Apesar disso, ocasionalmente você descobre que você é feliz. Mas já que ocasionalmente você é feliz, você não entende algo claramente: a felicidade não é devido a algo, nem mesmo a um esforço para alcançar algo; ela acontece a sua revelia. Se você fica feliz apesar de todos os desejos que não foram realizados, isso não deveria ser um indicador que você não deseja satisfazer seus desejos para ser ficar feliz? Se você precisa satisfazer todo e cada desejo para ser feliz, assim você não pode ter um momento de alegria em sua vida.

Os desejos a serem satisfeitos são inúmeros. E os desejos em curso também ficam insatisfeitos. Então, afinal quando você vai ser mesmo feliz?  Alguém disse, ‘Quando você satisfaz um desejo você se torna feliz. A A felicidade está entre a satisfação de um desejo e o despertar de outro desejo. Mas isso não é verdade.  Não há garantias de que o indivíduo ficará feliz depois de ter um desejo realizado. Talvez a pessoa tenha querido muito um novo trabalho; e quando o consegue, se dá conta de que não era bem tão bom assim. Portanto, não existem garantias de que a cada vez que você tem um desejo satisfeito, você ficará feliz.  Além do mais, não existe uma regra de que você só pode ser feliz após realizar um desejo.

Uma vez eu vi um cartaz em Mumbai promovendo a bateria de carro “Standard Battery”. No cartaz tinha uma pergunta: ‘Qual a semelhança entre uma sogra e a “Standard Battery”?’ A resposta vinha abaixo: ‘É que ambas não param nunca!' (Risos). Diga-me quais desejos você satisfez? Você expulsou seu inquilino quando decidiu que queria seu apartamento de volta? Você se livrou do posseiro que invadiu sua terra? Você pagou todas as suas dívidas do cartão de crédito? Você recuperou o dinheiro que você havia emprestado? A financeira devolveu o seu depósito? Você conseguiu recuperar todo o cabelo que você havia perdido de sua cabeça? Os políticos mudaram? Os padres das diferentes religiões se deram conta de suas responsabilidades? Quais desejos você realizou? Todos os desejos ainda estão aí. Alguns desses desejos não parecem que serão realizados nunca. Apesar disso, você pode descobrir momentos de felicidade. Isso significa apenas uma coisa: você não precisa realizar um desejo para ser feliz.


A Felicidade está centrada em si mesmo

Isso não é um fato ordinário. Você não precisa mudar nada. No entanto, você consegue descobrir um momento de felicidade sem ter realizado um único desejo. Com frequência você descobre que os momentos de alegria em sua vida ocorrem quando você não satisfaz nenhum desejo. Por um instante sua atenção é tomada por uma situação que o distancia das noções que você tem de si mesmo. A insatisfação que você sente por si se desfaz naquele momento e então você se descobre feliz.

A felicidade não está nem dentro de você nem fora de você. O mundo exterior não lhe pode negar a felicidade, nem pode criá-la para você. O mundo pode apenas prover situações nas quais você possa ser feliz. E muito menos sua mente pode criar felicidade para você; no entanto, você às vezes se descobre feliz. Quando você vê uma flor, você se relaciona com ela como um objeto. Você diz ‘Isso é uma flor’, da mesma forma que você diz ‘Isso é um Swami’, ‘Isso é uma cadeira’, ‘Isso é uma árvore’, e assim por diante. No entanto, você não pode apontar para algo e dizer ‘Isso é felicidade’. A forma com que você se relaciona com a felicidade é ‘eu sou feliz’, ‘eu não sou feliz’. Isso significa que o fato de você ser ou não feliz é centrado na noção que você tem do eu. Por isso não tem sentido você dizer que você não é um sucesso. Se você pensa que o sucesso depende da realização de seus desejos, então, de fato, você não é um sucesso.

Como um professor, meu trabalho aqui é o de apenas chamar sua atenção de volta para si mesmo. Se mesmo sem satisfazer qualquer de seus desejos, você consegue ser feliz e você consegue se aceitar, então você está bem. Você terá uma jornada bastante edificante adiante. Isso é o que significa a palavra ‘mokṣa’ em Sânscrito: liberdade; ou seja, liberdade da noção de quem você pensa que seja. Tecnicamente nós dizemos saṃsāritva-nivṛtti, que é liberdade da noção equivocada sobre a sua natureza de ser limitado e infeliz. Essa felicidade não é apenas uma esperança, mas um entendimento que vai além da esperança. Sua própria experiência de felicidade lhe dá um maior entendimento sobre si mesmo, e isso não é apenas uma questão de esperança.


As noções que temos sobre nós mesmos não nos são intrínsecas

Quando você vê o sol encoberto por nuvens, você não conclui que o sol não existe. O próprio fato de você ver as nuvens revela que o sol existe. A borda prateada que delineia a nuvem sugere a existência do sol. Você verá o sol, não importa quão nublado o céu esteja, já que o céu não é estático e está sempre se movendo. Enquanto um grupo de nuvens se afasta e outro grupo de nuvens se aproxima, você consegue ver o sol ali, naquele pequeno espaço entre as nuvens.

Da mesma forma, apesar de todos seus problemas, frustrações, insucessos e todo o seu julgamento sobre si de que não é uma boa pessoa, você ainda consegue vivenciar a felicidade. Isso acontece porque todas as noções sobre o eu são variáveis e não intrínsecas ao próprio eu. Essas noções são apenas pensamentos passageiros, uma vez que eles não têm um fundamento, uma base sólida.  Como são variáveis, esses pensamentos se vão e você consegue se reconhecer como uma pessoa capaz de ser feliz. Uma pessoa feliz é uma pessoa que não tem medo do mundo e está livre da sensação de insegurança.

Quando você se esquece de si mesmo, você se descobre como um ser feliz. Imagine eu lhe fazer esta pergunta ‘Quando você quer ser feliz?’ Você não vai me responder ‘Ah, eu quero ser feliz somente amanhã, porque hoje eu estou curtindo uma fossa’. Talvez, no intuito de barganhar, você diga ‘Swamiji, eu estou preparado para ser infeliz hoje, mas por favor dê um jeito para, ao menos, eu ficar feliz amanhã!’ Então, onde está seu desejo? Está na infelicidade? Não, seu desejo está sempre na felicidade. Você quer ser feliz agora e sempre, em qualquer lugar, e em qualquer situação. Sendo assim, você terá de concluir que essa tal felicidade, que você experiencia em certos momentos, apesar de seus desejos não serem satisfeitos, deve ser mesmo verdadeira; e isso o faz ser totalmente aceitável. É assim que o indivíduo tem um entendimento sobre a questão da insegurança.

Seguranças materiais não resolvem o problema da insegurança. Dinheiro, poder, influência, nome, saúde e amigos criam um sentido de segurança. Não estou dizendo para você descartá-los; no entanto, saiba que conquanto você pense que tudo isso é necessário para que você possa se sentir seguro, então você é de fato inseguro.


Todo mundo quer se livrar das muletas

Ninguém quer se apegar a muletas.  Imagine que alguém fraturou a perna e tem de usar muletas por três meses. Até que um dia a pessoa se cura e pode voltar a caminhar sozinha sem a ajuda delas. O médico diz ‘Agora você já pode andar sozinho; você não precisa mais de muletas’. Mas a pessoa insiste, ‘Doutor, eu venho usando essas muletas já há três meses e agora eu não consigo viver sem elas. Eu quero usá-las para sempre.’ Ora, ninguém quer usar muletas para sempre! É da natureza humana querer ser livre.

Todo mundo quer caminhar com as próprias pernas, ser independente. Isso é o que chamamos “ficar em pé sobre seus próprios pés”. Você aprende isso já na infância. No começo, uma criança que está aprendendo a andar se agarra a alguma coisa ou a alguém. Mas depois, a medida que a criança cresce, ela aprende a encontrar seu próprio equilíbrio e consegue andar sozinha, sem nenhuma ajuda. O afã é sempre por liberdade, liberdade das muletas.  Da mesma forma, se o dinheiro lhe dá uma sensação de segurança, e você aceita isso; mas ao mesmo tempo isso também revela a sua insegurança.

Como indivíduo, você tem noção de suas inseguranças e se sente incompleto. Por isso, você busca segurança em algo ou alguém que o faça sentir-se completo. Você quer se sentir diferente do que você se sente; você quer ser reconhecido pelas outras pessoas e então sai em busca dessa aprovação. Porém, as outras pessoas também buscam o seu reconhecimento. Ambos buscam o mesmo reconhecimento, e ambos o conseguem, porém sempre de forma condicional.

Meu objetivo aqui é fazê-lo ver que você busca reconhecimento dos outros porque você mesmo não se aprova. Por isso que quando alguém lhe diz que você é uma pessoa maravilhosa, você pergunta, ‘Mas você acredita mesmo que eu seja essa pessoa maravilhosa? Por quê?’ Você pergunta isso porque você duvida disso! No fundo, você não se aprova verdadeiramente.

Que isso fique bem claro para você: o ser tem de ser totalmente aceitável para você. Mesmo que toda a humanidade diga que você não é uma boa pessoa, se você se vê como uma boa pessoa, então não há nenhuma indagação ou confusão.  Se toda a humanidade começasse a dizer que você na verdade não é um ser humano, você começaria a duvidar disso? Você vai parar para verificar se você tem uma cauda? Mesmo que a humanidade toda seja louca de lhe dizer uma coisa dessas, você vai ficar tranquilo e apenas constatar que isso não é verdade, e que a humanidade enlouqueceu. Isso é conhecimento. Você não vai comprar a ideia dos outros. O que os outros pensam não significa nada para você, conquanto você pense adequadamente sobre si próprio.


O problema é você e a solução é você

Na visão do śāstra, o ser sempre é completamente adequado. Você percebe isso quando experiência um momento de pura alegria. Nesse momento de alegria fica claro que você já é seguro, que você já é feliz. O mundo não mudou. As estrelas, o sol, o planeta, as pessoas, tudo continua o mesmo. Nada mudou e, no entanto, você consegue se alegrar com si mesmo com leveza. A razão disso é que você se percebe diferente quando você está feliz. Na verdade, você se percebe como a pessoa que você sempre quis ser.  O que você queria ser, você já é. É por isso que eu digo: você é o problema e você é a solução.

Se isso é verdade, então a liberdade dessa não aceitação e confusão sobre si mesmo é que chamamos de mokṣa. O que é completamente diferente do que ir para o svarga, o céu. A maior parte das religiões age como agentes de turismo para o céu.  Porém, nós encaramos esse ‘céu’ apenas como umas férias temporárias, uma escapada dos problemas. Se não existe aprovação de si mesmo, a pessoa pode se sentir infeliz mesmo no céu. Ir para o céu não é mokṣa. Mokṣa é aqui e agora. Temos de entender essa verdade.

Uma coisa é certa: o seu problema não é outro além de você mesmo. Por isso ninguém virá salvá-lo. Você é o seu próprio salvador. Aliás, você nem precisa ser salvo. Você já está salvo porque você não pode ser mais do que você já é.

A ciência moderna tem provado que tudo é uma manifestação. Quando você olha para o céu, você vê as estrelas brilhando muito longe. A luz dessas estrelas leva milhares de anos para atingir a Terra. Através do telescópio Hubble, você pode até ver as estrelas cujas luzes começaram a brilhar há doze milhões de anos. E no entanto, existem pessoas que dizem que o mundo foi criado há dois mil anos. Uma vez na Califórnia, uma pessoa que até teve uma educação escolar discutiu comigo sobre isso. Foi um episódio interessante. Ele argumentava que o mundo havia sido criado há três mil anos. Eu respondi. ‘ Como pode dizer uma coisa dessas? E todos esses esqueletos de dinossauros cuja existência foi provada e datada pelo método do Carbono 14 como tendo milhões de anos?’ Ele me respondeu, ‘ Nós não aceitamos o teste de Carbono 14.’ Eu lhe disse, ‘ Mas quem é você para aceitar ou não o teste de Carbono 14? Esse teste é comprovado pela Ciência.’ Então ele me perguntou, ‘ Você aceita o fato de que Deus é todo poderoso?’ Eu disse, ‘Sim.’  Então ele me disse com um sorriso triunfal, ‘ Se Deus é todo poderoso, não seria possível ele ter colocado alguns esqueletos de dinossauro quando ele criou o mundo há três mil anos?’ Então eu perguntei a ele educadamente, ‘ O senhor vai querer o seu café com ou sem leite?’ Eu me dei conta de que era inútil continuar a conversar com ele!

Como alguém pode dizer que o mundo foi criado há três mil anos?! Se mesmo com todas as evidências da ciência, uma pessoa insiste em uma crença que é comprovadamente errada, então temos de ter mais é pena de tal pessoa. Ela tem um problema psicológico. A ciência já provou além de qualquer dúvida que o mundo não é uma criação; é mais uma manifestação. Tudo que existe aqui não são nada mais do que objetos quânticos; tudo são partículas quânticas.

Se tudo o que existe, incluindo um elétron, é um objeto quântico, então quem é essa pessoa que é consciente até de um elétron? Essa pessoa é vista em nosso śāstra como a pessoa que é o conteúdo de tudo, e que é a resposta para o que chamamos de condição humana.

A condição humana é caracterizada pelo fato de sermos autoconscientes. Se não existisse a consciência de nós mesmos, não existiria o julgamento de si mesmo, nenhum complexo, nenhum problema existencial, nenhum problema de qualquer tipo, a não ser o problema da sobrevivência que todos os seres vivos têm.  Mas existe uma autocrítica, na qual o ser tem de ter uma aprovação, senão o ser não vai se sentir aceito ou aprovado como pessoa. Tal sentido de autoaprovação é experienciado pelo ser humano, mas não é reconhecido.  O ser somente se sente aceito e aprovado quando experiencia momentos de plenitude, quando se está feliz com o mundo, consigo, com tudo ao redor. Você próprio é a solução final; e não pode aceitar nada menos do que isso. Então, mokṣa não é uma quimera. É liberdade das noções equivocadas sobre si mesmo. A isso chamamos espiritualidade.



O que é uma vida espiritual?

Uma vida religiosa não é uma vida espiritual, mesmo que cada pessoa espiritualizada leve uma vida religiosa. Uma pessoa espiritualizada não pode ter uma vida espiritual sem ser religiosa. Ser religiosa não significa apenas religiosidade. Ser religiosa é ter a compreensão de īśvara. Você se reporta sempre à īśvara. As pessoas que têm um sistema de crenças e o usam apenas com o intuito de irem para o céu não precisam de nenhuma mudança. Tudo de que necessitam é viverem com suas crenças e depois morrerem com elas. Essa é uma vida religiosa.

Na Índia, os aspectos religiosos, culturais e sociais são fortemente interligados. Acontece que tudo está ligado à vida religiosa; mas temos de compreender isso profundamente. Nós temos várias imagens, várias formas, mas não sabemos bem sobre seus conteúdos. A espiritualidade nos ajuda a ver o espírito que está por trás da imagem. Uma vida espiritual significa reconhecer que você é a solução. Você tem de saber que você é a verdade por trás de tudo. Se esse é o objetivo, então sua vida se torna de fato espiritual. Isso é chamado vyavasāyātmikā buddhiḥ, a clareza de objetivo, entendendo que o que buscamos nada mais é do que a libertação de nossas inseguranças. Libertação das inseguranças é a própria segurança, e é isso que você é. Nosso śāstra diz que não existe nada mais seguro do que você. Tudo o mais tem sua existência em você. Isso sim é que é uma visão! Você é a segurança máxima. Saber que fundamentalmente você não tem nenhum problema é um desafio para você. Você me diz, ‘ Swamiji, eu quero ser salvo, eu quero ser salvo!’. Mas você já está salvo!

Mirabai fala assim em uma de suas canções: ‘Eu fui procurar o guru. Eu o saudei e pedi a ele que me salvasse. Sabe o que ele fez? Ele virou os meus olhos para dentro de mim. Fui procurar meu guru para ser salvo e cruzar esse oceano da existência. E para minha surpresa, descobri que não tinha nenhuma água sob meus pés.’ Que canção maravilhosa! Nós temos essa visão; e está em toda a parte. Em nossas canções, cultura, idiomas, seja em Tamil, Hindi, Telugu, Gujarati, Assamese ou qualquer outra, essa visão é muito presente.


Você é um sucesso quando o objetivo último está claro para você

O objetivo último deve ser muito claro para você. Quando você identificar o objetivo, lhe asseguro, você terá êxito. Não há nenhuma razão para você concluir que você não terá êxito porque você está na finitude da vida. É uma questão de se apropriar disso; é um processo de aprendizado e de ganhar clareza dessa visão. Esse entendimento por si só é incrível!

Você irá entender isso melhor com esse incidente que se passa em uma vila. Um Subramaniam, chamado Subbu, herdou bastante dinheiro. Ele não estava trabalhando e nem tinha vontade de trabalhar. Ele passava o tempo de forma ociosa, mascando folhas de bétula. Ele vivia apenas para comer. Era impossível cozinhar para ele. Ele costumava se irritar e atirar o prato longe se o sal da comida estava um pouco a mais ou um pouco a menos para seu gosto. Já que ele vivia para comer, comer se tornava o único projeto de vida dele. Pela manhã ele falava sobre o menu do almoço; no almoço, ele falava sobre o menu do jantar, e no jantar ele falava sobre o menu do café da manhã do dia seguinte. Nenhum cozinheiro o satisfazia. Ele estava sempre com raiva. Então, um dia, a vizinha dele me pediu que eu fizesse alguma coisa. Fui falar com Subbu e descobri que ele cantava muito bem e que tinha uma bela voz. Eu disse a ele, ‘ Você tem uma voz muito boa. Você tem talento.’
‘Verdade, verdade mesmo, Swamiji?’
‘Sim, você tem uma bela voz e talento para a música.’
‘Você pensa que eu posso aprender música, Swamiji?’
‘Sim, você deve aprender música. Aproveite que tem um professor de música aqui perto’.

Então Subbu começou a aprender música e pouco a pouco a música foi tomando conta dele. E como ele adorava música, depois de alguns meses, ele estava cantando o tempo todo, enquanto comia, enquanto caminhava; enfim, enquanto fazia qualquer coisa. Alguém cozinhar para ele já não era mais um problema. Ele se deu conta de que a música era um prazer estético muito mais profundo do que comer. Isso é mudança!


A visão do śāstra muda nossas prioridades

É por isso que temos de passar, por uma transformação, por uma mudança. A mudança não é dos papéis sociais que a pessoa tem como policial, ou marido, ou esposa, ou pai, mãe, sogra, nora; a mudança é você, a pessoa fundamental que está vivendo cada um desses papéis. Quando você muda toda a sua atitude com relação a si mesmo, então você tem sucesso.

Tal mudança é como aquele imenso painel no saguão do aeroporto de Londres. É muito interessante observá-lo. No painel têm os nomes de várias companhias aéreas como Air India, British Airways, Air Canada, Air France, KLM, e tantas outras. No início a Air India nem aparecia na lista do painel. Dali a pouco, ela começou a aparecer no fim da lista com o horário do embarque. Quando a informação no painel tem de mudar, se ouve um som tipo ‘gada, gada, gada, gada’ que chama a nossa atenção. Se não fosse isso, a pessoa acabaria dormindo enquanto esperava a conexão e acabaria perdendo o vôo. Então você ouve o ‘gada, gada, gada, gada’, e nota que a Air India que estava lá no final sobe um nível porque a British Airways que estava lá no topo decolou. Dali a um tempo, de novo você ouve ‘gada, gada, gada, gada’. Agora é a Air Canada que está no topo. Então você também nota que a Air India que subiu mais alguns níveis rumo ao topo está pronta para o embarque. ‘Gada, gada, gada, gada’  e a Air India finalmente decola. Dessa mesma forma, um ‘gada, gada, gada, gada’ tem de se desenrolar em sua mente também. Prioridades têm de mudar; uma mudança acontece para que decolemos.

Você não precisa mudar nada. Você não precisa mudar de emprego; você não precisa ir para um ashram; você não precisa ir a lugar nenhum. Você muda apenas estando no lugar em que está. As prioridades é que mudam para uma decolagem. Essa é uma vida de sucesso. Nosso śāstra lhe dá essa visão, lhe dá esperança. Não apenas esperança, mas aponta para essa sua experiência e revela o que ela significa. O que mais você precisa? Você não precisa de mais nada. Nenhuma garantia é requerida.

Portanto, quando essa mudança acontece em sua mente, você dá prioridade ao seu objetivo. Então, tudo o mais se torna secundário a esse objetivo. Não tem como errar. Isso é maravilhoso! Você consegue realizar várias coisas em sua vida. Falando de forma relativa, você também consegue atingir o sucesso. Porém, fundamentalmente, você deve ser capaz de ver que você mesmo já é a solução.

Não há nada melhor do que descobrir quem somos de verdade. Quando você está feliz, você é a plenitude. E essa completude que você experiência é a felicidade. Essa completude é a sua verdadeira natureza. Você precisa saber disso. É por isso que quando estamos felizes, estamos relaxados, nos sentimos em casa. A gente não reclama assim: “Ai, esses dias ando tão feliz; eu não sei por que ando tão feliz’. É o seu estado natural ser essa pessoa plena!






sexta-feira, 22 de maio de 2015

qual a natureza da tristeza?


Satsanga com Swami Dayananda - maio 1994





Resultado de imagem para swami dayananda  photos
Swami Dayananda Saraswati






Pergunta:  Swamiji, qual é a natureza da tristeza?  Uma pessoa sábia sente tristeza?

Swamiji :
A tristeza é algo que acontece quando você é colocado numa situação onde alguma dor está envolvida.  A tristeza vem e vai pois as situações, acompanhadas por alegria e tristeza, sukha e duhkha, vêm e vão.  Sukha e duhkha são parte do todo.  Embora possam surgir a qualquer hora, não afetam a pessoa que tem esse conhecimento.  Sukha, naturalmente , é nossa natureza e duhkha pode vir, mas não tem domínio sobre a pessoa, porque, com o conhecimento, não mais existe confusão sobre quem sou eu.  O pensamento apenas ocorre.  A pessoa não tem nenhum controle sobre os pensamentos que surgem, nem há qualquer necessidade de controlá-los.

A pessoa que compreende o que é real, simplesmente permite que os pensamentos ocorram.  Pensamentos vêm e vão automaticamente.  Nenhuma ação é necessária de nossa parte.  Os sentimentos manifestam-se como pensamentos e esta é a única realidade que os sentimentos têm.  Fome e sede também pertencem à mesma ordem de realidade da mente - uma realidade empírica.  Uma pessoa sábia também tem experiência de fome e sede, assim como emoções, mas ela sabe que, porque elas têm apenas uma realidade empírica, não afetam sua plenitude.  Tal pessoa sabe:  "Tudo isto sou eu, mas eu sou mais do que tudo isto".  Tudo o que acontece, acontece.  Esta é a visão. Desse modo, de que maneira a mente é, de alguma forma, diferente do corpo físico?  Assim como o corpo tem de ser banhado e alimentado todos os dias, passar por dores, doenças e tudo mais a que está sujeito, assim também a mente.  A mente pode ter seus pensamentos, mas todos eles são anulados para uma pessoa que tem a visão total.

Quando os pensamentos vêm, não há nada para segurá-los.  De qualquer modo, nenhum pensamento permanece por muito tempo.  Um pensamento é momentâneo: ele vem e vai.  Mas pode haver uma consistência no pensamento desde que, naturalmente, nós o sustentemos.  Conhecendo a natureza do que é real, o sábio não sustenta pensamentos de tristeza. 

Qual o sentido da vida?







Resultado de imagem para swami dayananda




SATSANGA COM SWAMI DAYANANDA - dezembro 1993

Pergunta: Swamiji, qual é o sentido da vida?

Swamiji:
Se você toma a palavra "sentido" como sendo "objetivo", o sentido da vida, certamente, não pode ser a morte. Se a morte é o sentido da vida, então, evidentemente, não preciso nascer - o objetivo sendo a minha ausência. Se me encontrava ausente antes de nascer, não preciso nascer para não existir. Assim, não posso dizer que a morte seja o objetivo da vida.

Nem posso dizer que outra coisa mais do que a própria vida seja o objetivo da vida. Por conseguinte, o seu sentido ou objetivo tem de ser encontrado dentro da própria vida. Eu diria que o objetivo da vida é apenas viver. A morte acontece, mas não é o objetivo da vida. E, desde que o sentido da vida é viver, a pergunta seguinte passa a ser "o que é viver?".

Não posso dizer que estou vivo quando não estou vivo para a realidade da vida. Não estar vivo para a realidade da vida é sonhar, viver uma vida de sonhos, falsa, o que significa não viver. Por essa razão o sentido da existência deve ser viver uma vida verdadeira. Viver é o sentido. Viver implica em uma vida com significado; de apego à verdade, uma vida onde as realidades são confrontadas.

Estar vivo, então, é estar vivo quanto às realidades da vida, às realidades de minhas buscas e de minhas lutas. Quão desejáveis são os objetivos que procuro atingir? Até que ponto serão capazes de prover o que desejo? Será que me farão uma pessoa feliz e realizada? Para que eu possa estar vivo para essas realidades, os objetivos que busco devem ser examinados e entendidos apropriadamente.

Devo também considerar a pessoa que está lutando - eu. Quão válido é lutar? Lutar implica uma pessoa insatisfeita, uma pessoa insatisfeita consigo mesma. Quão válida é essa auto-insatisfação?  Com o que eu não estou satisfeito? Estou insatisfeito com o meu físico? Com a capacidade intelectual de meus pais? Estou insatisfeito com a minha competência? Estou insatisfeito com a minha mente, minha capacidade de pensar, minha memória e minhas emoções? Com o que não estou satisfeito? Se existe uma auto-insatisfação, tudo isso deve ser examinado.

Se essas realidades não são examinadas e eu busco satisfação, a minha busca não tem sentido. Essas perguntas cruciais devem ser respondidas para que possamos encontrar o sentido da vida. Devo ter um domínio sobre essas realidades. E se eu não estou satisfeito comigo mesmo, se todos esses fatores, ou mesmo alguns deles, que me constituem, não são considerados satisfatórios, como posso remediar essa situação? Será que os vários objetivos que busco me ajudarão? Terei eu, até mesmo, algum objetivo capaz de alterar a situação?

Mesmo se estivermos insatisfeitos com o nosso corpo e sua aparência, ou com nossa mente, nós não despendemos todo o nosso tempo tentando mudá-los. Isto porque também aspiramos a muitos outros fins na vida, tais como poder ou dinheiro, fama, influência e controle. Podemos esperar a mudança de nosso corpo ou mente através de alguns desses objetivos? Eu penso que não. Até agora ninguém realizou tal coisa.

Suponha que você tente mudar seu corpo, como irá fazê-lo? E mesmo que consiga fazê-lo, por quanto tempo irá conservá-lo? Tais objetivos são sem sentido. Você não pode esperar mudar o seu corpo para sempre, porque ele tem suas intrínsecas limitações. Por conseguinte, ninguém vai, satisfatoriamente, mudar o seu corpo.

O que significa mudar a mente? É com a mente que estou insatisfeito? O problema é que me encontro insatisfeito comigo mesmo, não com o corpo ou com a mente. Se eu sou o corpo e a mente, então não há uma maneira efetiva de mudá-los. E se eu sou muito mais do que o corpo e a mente e estou insatisfeito comigo mesmo, então devo examinar minuciosamente o que é esse ser.

Porque as realidades envolvem aquele que com elas lida - eu, devo, em primeiro lugar, ter um comando sobre a realidade que me diz respeito. Tudo o mais vem depois e tomará conta de si mesmo. Devemos também entender as realidades do mundo, mas o sentido da vida começa comigo.  Não vejo nenhum outro sentido. Nascer como uma criança significa que meu corpo está incompleto, ainda não desenvolvido. Assim como um botão tem de florescer, o corpo de um bebê tem que se tornar adulto. Por essa razão, o sentido da vida pode ser apenas viver - crescer. A vida continua, mas primeiramente, como um ser humano com um corpo de criança, tenho que fisicamente me tornar um adulto. E desde que tenho uma mente pensante, eu deveria presumivelmente ter uma certa disciplina para aprender - o que também é crescimento. Consequentemente o crescimento em si mesmo seria o sentido da vida.

Uma vez que eu tenha crescido fisicamente, sou considerado um adulto. Entretanto, há uma outra área de crescimento denominada crescimento interior, crescimento emocional ou crescimento moral, que está centrada em minha vontade. Este crescimento, também, é o sentido da vida. Tenho que crescer até atingir a minha realização. O sentido da vida, portanto, é tornar-se um ser humano pleno e completo.

Obviamente, maturidade implica na estima de nós mesmos e do mundo. Se nos sentimos perseguidos pelo mundo, esse senso de perseguição vem ou de nós mesmos ou do mundo externo. Se o mundo não me oprime mais do que a outrem qualquer e, ainda assim, me sinto perseguido, então eu deveria saber que o sentimento de perseguição vem de mim mesmo.

Conquanto essa condição possa ser chamada de doença mental, eu a chamo de imaturidade emocional porque o problema é próprio de uma criança, ainda que a pessoa com o problema tenha um corpo de adulto e, até certo grau, uma mente adulta. As situações vividas por essas pessoas são, todas,  condizentes com a fase adulta. Ela não é mais protegida por seus pais, nem é mais necessário este tipo de proteção. A pessoa, fisicamente, biologicamente, é um adulto. Pode já ter se casado, ser pai/mãe ou avô/avó. Mesmo assim a criança de seu interior  ainda parece ter uma influência sobre a pessoa, governando seu comportamento e reações frente ao mundo.

O que estou dizendo é que algo que aconteceu a essa pessoa, quando criança, não foi trabalhado. A percepcão infantil é inevitável. O problema é comum a todos, não há exceções. Durante o seu desenvolvimento a criança descobre um ego. No segundo ano de sua vida, esse ego é absoluto. É por isso que o segundo ano de vida de uma criança é às vezes chamado como o "Terrível Dois" (em inglês,  "Terrible Two"). No terceiro ano, porém, a criança descobre outros egos, algo que é também muito humilhante e submisso.

Como criança, você constata que sua mãe tem seu próprio ego e seu pai, o dele. Todos à sua volta têm um ego e quando você vai para a escola, está cercado por nada mais que egos - cada um dos quais você considera bastante desconcertantes, pois você acaba de sair de um ego absoluto. Um ego absoluto é como o ego do Senhor. Partindo desse ego, você se encontra em um estado onde reconhece todos esses egos - sem ter nenhum dado para lidar com eles.

A descoberta de todas essas mentes e idéias conflitantes é um estágio muito confuso de seu desenvolvmento. Existe também um natural temor. Você se sente ameaçado por todos que o rodeiam por serem todos tão grandes. Você se admira, como se admirou o jovem escolar em "Village Schoolmaster", de Goldsmith, que tanto material pudesse sair da cabeça tão pequena do professor. Este é exatamente o ponto de vista de uma criança quando se confronta com os gigantes do mundo, todos eles parecendo saber tanto.

A criança não sabe que essas pessoas são igualmente confusas. Ela julga que todos são o máximo em tudo e os respeita a todos, ainda que eles, também, tenham de lidar com os seus próprios problemas da infância. Caso não os tenham trabalhado, carregam necessariamente dento de si uma criança. Um pai de uma criança carrega sua própria criança, o mesmo ocorrendo com a mãe da criança. Consequentemente, cada um é, ao mesmo tempo, uma criança e um adulto. Essa pessoa criança-adulta está presente em toda sociedade.

Em tal sociedade, há naturalmente prováveis situações conflitantes e a criança tem que lidar com todas elas. Baseada nessas situações, ela aprende a confiar deveras no mundo ou, definitivamente, a não confiar. Uma criança que muito confia pode ser abusada por outro, ao passo que uma criança que não confia no mundo vai pensar: "O mundo está sempre lá fora para me pegar". Esta resposta conduz a problemas que os psicólogos chamam de distúrbios de caráter.

Um problema comum é o sentimento de culpa. Uma criança cujos pais brigam todo o tempo pode pensar que é a responsável e sentir-se culpada. Tais conflitos criam uma baixa auto-estima e levam a uma espécie de neurose, um problema psicológico que todos, em certo grau, têm. Essa desordem continua pela vida afora, arruinando também a percepção do adulto.

Quando você vai tratar dessa desordem? A menos que olhe para você mesmo, como irá lidar com isso? Eis aqui onde entra a maturidade emocional. Você pode resolver problemas de infância através do entendimento de todo o processo, reconhecendo tudo que aconteceu e observando o passado que foi enterrado. Você apenas aceita o que aconteceu antes, bom ou ruim. Tratar de problemas que existem, referentes ao passado, é ter uma certa maturidade. É um modo maduro de ver-se a si mesmo.

Então, mais uma vez, você olha o mundo do mesmo modo. De fato, se você pode simplesmente aceitar seu próprio passado, então lhe será mais fácil aceitar também o mundo. O mundo pode apenas existir. O modo maduro de olhá-lo é não desejar o seu controle. Nem você pode controlá-lo. Se você quer controlar o mundo, mas é incapaz, você se sente controlado. Você pode agir no mundo, mas não pode ter sobre ele um controle absoluto. Um dos traços mais predominantes nas pessoas é este: a tentativa de controlar de várias formas o mundo. Isto é o que chamamos de imaturidade. Que controle você tem? Não tem nenhum; pode apenas acomodar as coisas, entender e fazer o que puder. Certos poderes podem lhe ter sido dados para fazer alguma coisa: compreender, organizar, reorganizar e reunir tudo. Todo mundo tem certos poderes, e com esses, você faz o melhor que pode.

Aceitação não é meramente engolir tudo; é a aceitação de uma dada situação como ela é, fazendo o que é apropriado àquela situação. Assim, agir é ganhar uma maturidade que é a maioridade emocional. Esta maturidade pode ser estendida mais adiante, incluindo um modo maduro de entender os valores, com referência à nossa interação com o mundo.

Começar a fazer perguntas tais como: "Porque não tenho nenhum controle ?", pode também conduzir a uma apreciação de Isvara, o Senhor. Não precisamos subordinar essa apreciação à maturidade, mas pode ser visto também dessa maneira; nessa aceitação de Isvara reside um outro aspecto de um modo de viver maduro. Aceito Isvara, o Senhor, porque não tenho nenhum controle. Quando não tenho nenhum controle, então aprecio Isvara. Pode haver, por essa razão, uma certa entrega com referência ao que aconteceu no passado e ao que acontecerá no futuro. E faço o que posso. Se há uma apreciação de Isvara, há uma ordem, há um sentido na vida. As coisas  estão acontecendo e,  por conseguinte, aceito o que vem para mim e faço o que é para ser feito.

Eu questiono essa apreciação de Isvara sob o aspecto de karmayoga, o que pode ser considerado como uma vida religiosa, que é também parte do viver-se com maturidade, desde que, naturalmente, a religião seja apropriadamente entendida. Isvara é para ser entendido apropriadamente e, na medida que temos esse entendimento, está a nossa maturidade.

Maturidade emocional implica em um entendimento das estruturas dos valores e prioridades. Nossas priorodades devem ficar muito claras em referência aos valores. Há valores universais e há outros determinados valores, tais como um valor pelo dinheiro, pelo poder, nome, influência ou controle, que são valores mas não são, necessariamente, universais.

Uma pessoa pode ser feliz sem dinheiro, por exemplo, ao passo que valores como falar a verdade e não ferir os outros são valores universais. Há uma série de outros valores universais, como não roubar, compaixão, amizade e servir ao próximo. Estes são, todos, valores que respeitamos com referência ao comportamento dos outros.

Quero que todos sejam amistosos comigo, não representando nenhuma ameaça para mim, ajudando-me quando necessário e dizendo-me somente a verdade. Quero que ninguém me roube ou minta para mim. Tudo isso eu valorizo, significando que sou limpo de caráter, absolutamente ético no que diz respeito ao comportamento das outras pessoas. Nisso sou absoluto. ( Entretanto, quanto ao meu próprio comportamento, tenho alguns problemas). Sei que você também espera de mim o mesmo procedimento. Isto significa que tenho valores, ainda que eles possam não ser propriamente entendidos.

O valor dos valores geralmente não é entendido. Os valores são conhecidos por mim. Sei o que são, mas o valor de cada um dos valores não foi assimilado. No que se refere ao valor dos valores, preciso ser educado. Ou eu mesmo me educo, ou torno-me educado com a ajuda de alguém.

Se alguém lhe diz para falar a verdade, a coisa torna-se bem semelhante a um sermão. Você sabe bem que deveria falar a verdade. Do mesmo modo ninguém precisa dizer-lhe que não roube. Isto você também sabe muito bem. Não é necessário que ninguém lhe diga para não roubar, porque você também não deseja que a sua propriedade seja roubada por ninguem. Dessa forma, todos esses valores universais são conhecidos por você. O pregador de valores é portanto imaturo e aquele que o escuta, acenando afirmativamente sua cabeça, naturalmente, também o é.

Porque eu não deveria roubar? Qual é o exato valor do não-furtar? Quando roubo ou firo alguém, como sou realmente afetado? Perco alguma coisa? Somente se eu tiver algo a perder, existirá um valor, caso contrário, não. Para que alguma coisa seja um valor, a sua não observância por mim deve, irrevogavelmente, me conduzir a uma perda. A compreensão da imensidade de minha perda, quando me coloco contra um valor, é que me torna maduro.

Na medida em que aprecio a minha perda, me torno maduro, o que implica educação. Tenho de conhecer o valor dos valores acidentais, como dinheiro, poder, etc. Por estarem estes outros valores muito bem assimilados, terei problemas de prioridade em termos de quais valores a serem seguidos por mim.


Por exemplo, devo falar a verdade e perder o dinheiro que ganharia recorrendo a uma mentira? Ou devo, para ter o dinheiro, lançar mão da mentira? Obviamente, tenho um conflito a respeito de como agir e, sem dúvida alguma, farei aquilo que para mim for de maior valor. Se para mim o dinheiro representar mais do que a verdade, então a educação do valor não ocorreu.


Se analisarmos esse problema prioritário particular, encontraremos novamente uma falta de maturidade. Em termos de valores e gerenciamento emocional, existe imaturidade. No que você começa a lidar com esse problema, ocorre um amadurecimento, uma tentativa de amadurecer. De outra forma, você permanece imaturo, ainda que atinja os noventa ou cem anos. 

Sri Shankara

Sri Shankara

por Sri Swami Dayananda


No Guru Stotram que cantamos, o guru é reverenciado na forma daquilo mesmo (vastu) que ele ensina:

akhandamandalakaram vyaptam yena caracaram

tatpadam darsitam yena tasmai srigurave namah


“Saudações àquele guru que me mostrou onde está
aquele que é para ser conhecido, cuja forma é a
do universo inteiro, e que permeia tudo o que
se move ou que não se move.”

gurubrahma guruvishnuh gurudevo mahesvarah

gurureva param Brahma tasmai sriguraqve namah


“Saudações àquele guru que é o criador,
aquele que sustenta, e o destruidor e aquele que é
verdadeiramente, o ilimitado Brahman.”




Sri Dakshinamurti com os rishis e Sri Shankara com seus 4 discípulos






Sankara como Isvara

Falar sobre Sankara é desdobrar o que é Isvara, o Senhor. Nós não vemos Sankara como um indivíduo. Na verdade, nós não vemos nenhum mestre como um indivíduo. Mas, se ele é visto como Deus, como pode haver Jayanti (a celebração de seu aniversário)?

Consideremos o Senhor (Isvara) na forma de uma encarnação (avatara) tal como Rama e Krsna. As encarnações vieram em determinado tempo. Elas estão ainda disponíveis para serem reverenciadas como sendo o Senhor. Cada forma é, sem dúvida, a forma do Senhor. Mas o Senhor na forma de Krsna é alguém com quem eu posso me relacionar e aos pés de quem eu posso oferecer minha devoção. Na Bhagavadgita, quando Krsna usa a primeira pessoa do singular, é apenas no sentido de ser ele o Senhor. O Senhor que é ilimitado (vastu), tomando esta forma se torna uma encarnação. Do ponto de vista da forma, existe uma data de nascimento – e um aniversário. É por isto que celebramos Rama Navami e Krsna Jayanti, e Sankara Jayanti.

Um guru é sempre visto como aquilo que ele ensina. Esta é a diferença entre o que Sankara ensinou e o que outros professores ensinam. Se um professor ensina que o Senhor é o Senhor, que o mundo é o mundo, e que você é o que você é, o que isto faará você sentir? Antes que você fosse até aquele professor, você já pensava que fosse assim. Depois de ouvir o professor ensinar as Upanisads, você volta com os mesmos sentimentos! Você vai concluir, com certeza, que o professor não pode ser o vastu, pois ele ensina que o vastu é diferente de você e dele.

Sankara como Upadhi Visesa


Existem muitas pessoas iluminadas no mundo, além de Vyasa, que compilou todos os Vedas e escreveu o Brahma Sutra, e Sankara, que tornou o conhecimento disponível para as pessoas comuns. Por que, então, nós reverenciamos apenas Vyasa e Sankara, e não  outros? Existem outros professores ensinando que “Você não é separado do vastu”, o que há, portanto, de tão especial em Vyasa e Sankara? Eles são lembrados porque fizeram uma significativa contribuição para as gerações futuras. São, por isto, pessoas muito especiais. Isto é upadhi vivesa.

Upadhi vivesa pode também significar que aquela pessoa, em particular, tem alguma característica especial, ou que aquela pessoa tem uma capacidade que é miraculosa. A tradição hindu não dá grande valor a milagres. Demônios (asuras), assim como deuses (devas) tinham poderes miraculosos. Os demônios eram capazes de viajar no escuro (nisacaras) e capazes de voar (khecaras). Isto também é chamado upadhi visesa, mas não é isto que lhes faz merecedores de respeito. 

Pessoas de conhecimento medíocre podem avaliar um homem como sendo um grande homem apenas por sua capacidade de operar milagres. Alguns irão enaltecer a estória de Sankara compondo o Kanakadhara Stotra, que fêz cair uma chuva de moedas de ouro sobre uma mulher pobre que lhe deu uma amora quando ele foi à sua casa pedir esmola. Mas quando veneramos Sankara, não é por causa desses milagres. Em um verso simples que recitamos freqüentemente em homenagem a Sankara é descrito como Sankara é upadhi visesa:

srutismrutipurananam alayam karunalayam
namami bhagavatpadam sankaram lokasankaram

“Eu me inclino aos pés do Senhor na forma de
Sankara, que é uma bênção para a humanidade, que é
a residência de todos os sruti (Vedas), smrtis e puranas
e onde habita a compaixão.”

Nesta estrofe existe a afirmação de um fato: Sankara é srutismrtipurananam alayam. Um santuário ou um templo é chamado alaya. Um lugar onde alguma coisa reside é chamado alaya. Um lugar onde alguma coisa sagrada é guardada é um alaya. Os livros são considerados sagrados, portanto, a biblioteca é chamada de pustakalaya. Sankara foi um alaya – um pustakalaya. E de que tipo de livros? Sruti, os quatro Vedas, os quais chegaram até nós através dos sábios (rsis), e smrtis, que podem ser considerados como  obras nascidas da mente humana; eles são uma extensão das afirmações das srutis, escritas por pessoas que tinham status similares aos dos sábios, tais como Parasara, Apastambha, Bodhayana, etc. Eles tinham conhecimento sobre rituais, valores, dharma, etc. Todo o dharma sastra veio através dos smrtis. Finalmente, o purana, onde as incarnações do Senhor (de Bhagavan) são narradas. Todos esses – sruti, smrtis e o purana – estão localizados no santuário (alayam) que é Sankara.  

Suponhamos que Sankara, com todo esse conhecimento, fosse um maunibaba (uma pessoa com o compromisso de manter silêncio). O que aconteceria? Naturalmente, alguns devotos estariam lá, porque os maunibabas são sempre respeitados na Índia. Mas, não haveria nada de valor para ser transmitido até nós. Felizmente, Sankara era um karunalayam – ele tinha uma compaixão que fluía sob a forma de ensinamento. Nós celebramos seu Jayanti por causa de sua compaixão.

Sankara não apenas ensinou aos discípulos que estavam ao seu redor, mas também se certificou de que o ensinamento seria transmitido para a posteridade através de seus escritos. Naquele tempo a escrita não era tarefa fácil. Era feita à mão, sobre folhas de palmeira. Centenas de manuscritos desse tipo foram feitos, incluindo comentários extensos (bhasyas) sobre as Upanisads – Chandogya, Brhadaranyaka, Isa, Kena, Prasna, Mundaka, Mandukya, Taittriya e Aitareya, e, ainda sobre Brahma Sutra. Todos esses comentários foram escritos para incluir objeções e argumentos, e, então, o desdobramento do tema principal. 

Ao escrever os comentários, você tem que comunicar o significado real do assunto. Depois, você deve protege-lo de outros possíveis significados que possam ser dados por pessoas comprometidas com outras escolas de pensamento diferentes. Essas escolas de pensamento diferentes provêm apenas de diferentes tipos de erros que as pessoas cometem. Não existem diferentes escolas de pensamento em matemática ou física. Da mesma forma, em matéria da realidade que é o Senhor (Isvara) não pode haver “escolas de pensamento”. Dizem que pode haver diferentes pontos de vista. Podem haver pontos de vista somente quando a vista é completa. Quando não há visão, não podem haver pontos de vista. Não há meio de conciliação entre o efetivamente correto e o efetivamente incorreto. A pessoa tem liberdade de manter uma idéia errônea. Mas os outros não tem que aceita-la por causa do carisma dessa pessoa.

A compaixão para com a evolução espiritual da humanidade fez Sankara escrever todos esses livros. Portanto, ele é chamado karunalayam. Ele também se chama Sankara, não somente por ser seu nome, mas também por sua qualidade: sam-karoti iti sankarah. Ele proporciona mangalam, bondade, que é o “grand finale” (moksa) para o jiva. Ele é apreciado por Bhagavan: Bhagavatpada Sankara. Para este Sankara nossas reverencias. Observe que não há qualquer alusão a milagres neste verso.

Sankara e a tradição de ensinamento – Sampradaya


Sankaram sankaracaryam kesavam badarayanam
sutrabhasyakrtau vande bhagavantau punah punah

“Saudações de novo e de novo ao Senhor Siva na
forma de Sankara e ao Senhor Visnu na forma de Vyasa
por terem criado os sutras e os bhasyas.”


Um assunto é o sutra-krt; outro é o bashya-krt. Vyasa escreveu os sutras. Sankara escreveu os bashya sobre os sutras. Assim, tem havido uma tradição (sampradaya). Todos os mestres basearam sua filosofia e suas validações a partir dos sruti porque a tradição está disponível na forma escrita e vem sendo mantida pela linhagem de mestres (parampara). Observe que o método de ensino é apresentado em seu comentário. Esse método não está nas Upanisads nem na Bhagavadgita. Como se deve ensinar? Como deve-se lidar com determinado tópico? Como uma determinada palavra deve ser desdobrada? Como saber exatamente o que a sruti quer dizer? Para isto, você requer uma tradição. Sankara diz que a pessoa deve conhecer a tradição de ensinamento (sampradaya-vit) . Para que possamos aprender, precisamos da sampardaya-vit do mestre. Sendo o criador da tradição de ensinamento (sampradaya-krt), bem como um conhecedor da tradição de ensinamento (sampradaya-vit), Sankara é, evidentemente, este mestre. Sankara é considerado um elo luminoso na tradição, desde Vyasa até nosso mestre atual.

A sruti é a fonte de conhecimento que derruba as diferenças e, ao mesmo tempo,  acomoda as diferenças. Acomodando todas as diferenças, ele ajuda você a superar suas conclusões erradas. Esta atitude só é possível quando você sabe que a verdade está além de tudo isto e que ela acomoda as diferenças. Não se trata de uma acomodação com atitude complacente. Por isto Sankara é uma bênção para a humanidade, hoje envolvida em batalhas devido a problemas de diferenças. A esse Sankara nossas saudações de novo e de novo.

Anaikati, Índia
Maio de 1995