Qualquer pessoa que tenha um
contato, ainda que breve, com o sânscrito, dificilmente deixará de se render à
sua elaborada estrutura ou reconhecer sua importância.
Por sua comprovada
antiguidade (os hinos védicos são considerados, por muitos, mais antigos do que
os primeiros textos gregos), o sânscrito é bastante valorizado por estudiosos
de linguística que vêem nele um referencial comparativo para o estudo de outras
línguas.
Seu maior valor, entretanto,
é conferido pelo fato de ser a chave para a cultura tradicional da Índia,
abrangendo seus sistemas de medicina, matemática, engenharia, agricultura,
dentre outros, e, especialmente, sua literatura religiosa, sendo utilizada até
dos dias atuais por devotos que mantém essa tradição secular, usando-a nas
celebrações de rituais religiosos e na recitação de mantras.
Como o nome “samskrtam” etimologicamente sugere, o
sânscrito é uma língua “elaborada”, “muito bem feita”. Sua mais antiga
gramática, compilada por Panini, é incrivelmente sucinta e completa. Possui
4.000 regras enunciadas em sutras de uma brevidade surpreendente que, no
entanto, descreve a língua em todos os seus detalhes de estrutura.
O sânscrito, nos seus primórdios,
provavelmente era meio natural de comunicação, sujeito às naturais modificações
que ocorrem no decurso do tempo ou em virtude de diferentes usos regionais. O
impulso de preservar intactos os textos sagrados e de por um fim às variações
que se sucedem em uma língua em desenvolvimento é que levou Panini a
regulamentar a gramática do sânscrito.
Entrar em contato direto com
esses textos, escritos em sânscrito clássico, é o que motiva a maioria das
pessoas a se empenharem em seu estudo. Os próprios textos de Vedanta apontam a
gramática como uma vedanga (braço de estudo dos Vedas). Juntamente com ciências
como a etimologia, a a poética, a fonologia, a astronomia e a ritualística, o estudo
da gramática aparece como meio indicado para se obter maior qualificação da
mente para o Conhecimento do Ser. Isto porque seu estudo requer concentração e
análise: o estudante tem que prestar atenção nas condições enunciadas pelas
regras, na relação existente entre elas, e tem que aplicá-las em sucessão.
Sendo Vedanta uma sabda pramana, ou seja, um meio de
conhecimento em forma de palavras, a palavra em si adquire um valor
fundamental. É evidente que o essencial para a obtenção desse Conhecimento é
ouvi-lo de quem esteja capacitado a ensiná-lo, independente da língua utilizada,
já que é universal e atemporal. Por outro lado, conhecer a língua em que os
textos em questão são escritos auxilia na apreciação de certas nuances de
ideias, que nem sempre encontram equivalência completa em outras línguas. Ainda
que um conceito específico possa sempre ser explicado por uma série de palavras
que o descrevam, lidar diretamente com a terminologia usada na língua original
traz, sem dúvida, muito mais clareza e especificidade aos significados que se
quer passar.
A singularidade do sânscrito
pode ser admirada no fato de que as milhões de palavras de seu vocabulário
derivam-se de um conjunto de apenas 2.200 raízes, elementos básicos
constituintes da palavra. Por exemplo, deha
vem da raiz dih, “untar, ungir”
(=aquilo que é ungido) e sarira é formada
da raiz sr, “decair, jogar fora
(=aquilo que perece). Ambas as palavras significam “corpo”, apesar de cada uma
revelar diferentes aspectos do objeto que representam – um significado mais
intrínseco, que pode ser usado em outros vários contextos, dependendo da
imaginação do autor. Todas as palavras são formadas a partir desse grupo de raízes
pela adição ordenada de prefixos e sufixos segundo regras bem definidas.
Tambem alguns processos
gramaticais observados no sânscrito são únicos, não encontrando equivalência em
outras línguas. É o caso da construção de uma voz passiva com verbos
intransitivos, o que permite que uma sentença na voz ativa, do tipo “o rio
flui”, seja expressa na voz passiva, obtendo-se então a construção abstrata
“pelo rio é fluído” ou ainda “fluir é feito pelo rio”, formas nada usuais em
nossa língua.
Outra peculiaridade: não se
encontra no sânscrito um verbo que traduza a ideia de posse. A sentença “Rama
tem um arco” é normalmente expressa pelo uso do 6º. caso (genitivo) denotando o
possuidor, acompanhado de uma forma subentendida do verbo ser: “o arco de Rama
(é)”.
Enfim, todas essas
considerações apenas demonstram as vantagens de se conhecer uma língua para se
entender de forma mais abrangente ideias e conceitos por ela expressos. Tudo
isso, aliado à sua beleza e à riqueza de sua estrutura fazem do sânscrito uma
língua fascinante.
A classificação ordenada dos
fonemas com permanente correspondência única e recíproca entre o som falado e o
símbolo gráfico que o representa; as regras de combinação fonética (sandhi) que
garantem sempre uma sonoridade harmônica quando os elementos constituintes de
uma palavra se unem para formá-la ou mesmo quando se unem duas ou mais palavras
numa frase; o sistema de declinação que confere a cada palavra, pela terminação
utilizada, diferentes funções sintáticas na frase; enfim, a extraordinária flexibilidade
da língua permite o agrupamento de palavras, numa variedade insuspeita de compostos,
proporcionando ao sânscrito sua densidade, concisão, sutileza e poder
característicos ... É esse potencial expressivo que estimula o estudante a cada
vez mais aprofundar seu conhecimento nessa língua e literatura tão ricas.
João Carlos Morgado
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